Bolsonaro declarou que a exploração mineral nas terras indígenas seria a solução para a crise no fornecimento e para o aumento dos preços dos fertilizantes em consequência dos embargos impostos à Rússia pela invasão da Ucrânia. Ato contínuo, Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara dos Deputados, apresentou um requerimento pedindo urgência para a votação do Projeto de Lei 191/2020, de iniciativa do Poder Executivo e que pretende legalizar garimpos predatórios, mineração empresarial, construção de estradas e de hidrelétricas e plantio de sementes transgênicas em terras indígenas.

Foto: Alan Santos/PR

A insinuação do presidente se referiu, especificamente, à ocorrência de depósitos de potássio na região do Baixo Rio Madeira (AM), que estariam dentro e fora das terras do povo Mura. Porém, a principal ocorrência desse bem mineral, usado na produção de fertilizantes, já pesquisada na região, incide em área contígua, mas não dentro de terra indígena, e a sua eventual exploração independe desta lei. Além disso, um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) mostrou que 98,4% dos requerimentos de pesquisa mineral, protocolados na Agência Nacional de Mineração (ANM), não afetam terras indígenas.

Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, disse que o assunto “é polêmico, mas deve ser enfrentado”. Com o seu estilo Pôncio Pilatos, fez aprovar o regime de urgência para votar o PL 191, valendo-se dos votos fechados por meio da distribuição de emendas ao orçamento, dizendo que não tem compromisso com o mérito da proposta. Também criou um “grupo de trabalho”, uma deturpação do regimento interno que prevê o trâmite de projetos em comissões técnicas, para se posicionar a respeito, no prazo de 30 dias.

O PL 191 afronta a Constituição em vários pontos. Pretende legalizar o garimpo predatório, vedado em terras indígenas pelo parágrafo 7 do artigo 231 da CF; exclui os povos que vivem em terras que ainda não tiveram a sua demarcação homologada por decreto presidencial; ignora o direito das comunidades afetadas de se manifestarem contra a mineração no processo de consulta e retira delas a gestão dos recursos que forem auferidos, que ficaria a cargo de uma pessoa jurídica “híbrida”, com não indígenas na composição. Não é sequer considerado o interesse nacional na eventual exploração.

Manifestações contrárias

Fonte: Rede Brasil Atual

Lira levou à votação o requerimento de urgência para votar o PL 191 enquanto mais de 20 mil pessoas se reuniam em frente ao Congresso Nacional para protestar contra este e outros quatro projetos que integram o chamado “pacote da devastação”. A manifestação foi convocada por um grupo de artistas, liderado por Caetano Veloso, e teve o apoio de organizações e movimentos socioambientais. Os artistas estiveram com Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, para pedir que não fosse dado andamento às propostas predatórias aprovadas pela Câmara. Há quem diga que a afronta de Lira ao protesto dos artistas derivou de ciúmes, por não ter sido procurado.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), por sua vez, convocou o Acampamento Terra Livre (ATL) para 4 de abril, que se estenderá até o período previsto para a votação em plenário do que resultar do tal grupo de trabalho. Milhares de líderes indígenas de todo país demonstrarão a sua revolta contra o PL 191. Estarão presentes, inclusive, os Kaiapó da região do Gorotire (PA), que já foram aliados da garimpagem predatória, mas agora perceberam os danos causados à sua saúde e ao seu território.

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Nessa semana, o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que representa as empresas formais, publicou nota expressando divergências em relação ao PL 191 e oposição à garimpagem predatória, dentro e fora de terras indígenas. A nota afirma que “a preservação da Amazônia é condição necessária para a discussão de todos os temas relativos à mineração no Brasil”. A Federação Brasileira dos Geólogos (FEBRAGEO) também emitiu nota contrária à aprovação do PL 191, nos termos propostos por Bolsonaro e afirmou que “O PL 191/2020 é um equívoco e inclui pontos que fragilizam e desrespeitam o modo de vida e o direito de existir das populações indígenas que venham a ser afetadas por atividades produtivas e que possam ser itidas em seus territórios. A suposta resolução do problema da escassez do potássio não seria alcançada, o tornando uma ação vazia e declaradamente repleta de interesses obscuros”.

A quem interessa?

Se os povos indígenas, os artistas, os ambientalistas, os geólogos e as empresas de mineração se opõem ao PL 191, é o caso de se perguntar: a quem interessa esse projeto?

A posição das empresas de mineração deixa evidente que o PL 191 só atende aos interesses da mineração predatória. A permissividade em relação aos garimpos ilegais, neste e em outros projetos fomentados pelo atual governo, está gerando forte esquizofrenia na política mineral, para instituir um duplo regime de o ao subsolo, consolidando duas regras distintas, uma para as empresas formais, que pesquisam as jazidas e têm que atender às condições ambientais, sanitárias, trabalhistas e fiscais vigentes, e outra para a garimpagem ilegal, que poderia se legalizar sem cumprir tais requisitos, estabelecendo-se um regime de concorrência predatória.

Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Neste afã de legalizar a garimpagem predatória, o PL 191 também atende ao interesse de quadrilhas ligadas ao narcotráfico que, valendo-se da leniência do atual governo, se infiltram nos garimpos e organizam empreendimentos próprios para se financiarem e para utilizarem a sua infraestrutura, como pistas de pouso clandestinas a fim de promover o tráfico de cocaína. Estes vínculos já foram constatados por investigações conduzidas pelo Ministério Público e pela Polícia Federal em, pelo menos, duas regiões críticas, as terras indígenas Yanomami e Munduruku.

O PL 191 também é parte de um projeto maior de exploração intensiva dos recursos naturais e de ocupação destrutiva da região amazônica. Bolsonaro recebeu no palácio e em suas lives empresários interessados na apropriação das riquezas das terras indígenas e de pessoas indígenas cooptadas por eles, assim como visitou garimpos ilegais em terras indígenas, colocando o seu peso político pessoal em favor dessas aberrações. Bolsonaro e outros políticos do centrão têm interesse no apoio do segmento para a sua reeleição.

Quem paga o preço dessa bandalheira, de várias maneiras sobrepostas, é o povo brasileiro. Os povos indígenas e os ribeirinhos, invadidos, roubados, contaminados e violentados. Todos os que vivem da pesca, do turismo e de outras atividades lícitas na Amazônia e em outras regiões críticas. As jazidas minerais, as terras indígenas e as unidades de conservação são bens da União, que deveriam estar a serviço da coletividade, mas que foram entregues por Bolsonaro a grupos criminosos que o apoiam.