Foto: Telmo Pereira / Lisboa Amsterdam

Declaro aberta a sessão da minha Assembleia interior.
Aqui, em Portugal, onde a liberdade ainda tem o cheiro dos cravos
e a palavra “voto” carrega séculos de silenciamento,
eu escolho começar por dentro.

Porque de que serve votar cá fora,
se continuo a oprimir a minha voz mais íntima?
Que democracia é essa
que se exige nas praças,
mas não se permite no corpo?

Eu sou território português, mas também sou país de mim.
Com distritos emocionais em disputa,
com referendos não realizados entre o que sinto e o que mostro.
E hoje, neste acto solene de amor próprio,
proclamo:
o meu corpo será República,
a minha alma terá direito à palavra,
e o meu coração, essa Cidade interior,
não será mais ocupado por vozes estrangeiras à minha verdade.

Nenhuma parte de mim será colónia.
Nem a criança ferida,
nem o homem que chora escondido,
nem a mulher silenciada que herdei da minha mãe.
Todos terão assento no parlamento do meu ser.
Todos terão voz e voto
no rumo da minha existência.

E é preciso dizê-lo com firmeza e ternura:
o meu olhar é o de um afrodescendente,
filho de um continente que sempre soube que
ninguém se cura sozinho.
Trago comigo uma ancestralidade onde o colectivo era medicina,
onde a dor era partilhada para que não apodrecesse em silêncio.
E neste país onde o individualismo é promovido como sucesso,
sinto que o abismo entre nós aumentou
porque deixámos de reconhecer toda a gente como gente.

A minha tristeza não será mais oposição.
O meu descanso não será sabotagem.
O prazer será finalmente incluído no orçamento.

Eu revogo a ditadura interna que me fez acreditar
que só sou digno se me exceder.
E invoco a memória de Abril,
essa madrugada em flor,
para declarar independência de tudo o que me esmaga.

Em cada gesto de cuidado,
em cada “não” dito com respeito,
em cada pausa,
em cada abraço sem cobrança,
estarei a exercer o meu direito de voto
nesta pátria íntima que sou eu.

Porque a Democracia que defendo nas urnas
só será plena
quando aprender a escutar também as urnas do meu peito,
onde as vontades se acumulam,
à espera de serem contadas.

E se algum dia esquecer este manifesto,
que o som dos sinos da Revolução
e o tambor dos meus anteados
me recordem:
a liberdade não é um lugar;
é uma prática.
E começa dentro.
Nu Bai!

Dino D’Santiago
Portugal
19 de Maio, 2025